Darkdust morreu naquela manhã nublada, igual a tantas outras nos arredores do vilarejo de Wonderville. O mercador retirou as ferraduras das patas de Darkdust vendo que ainda podiam ser reutilizadas. Colocou-as em um saco de pano e pegou uma moeda do bolso.
- Sabe-se lá o que você vai encontrar do outro lado... Em todo o caso... - disse, deixando a moeda sobre o corpo.
Não seria fácil encontrar outro cavalo como aquele. Era o único que atravessava a Estrada Velha sem empacar ou dar coices. Continuou a caminhada sozinho, rumo ao vilarejo, carregando nas costas o peso que retirou do lombo do animal. Ajeitou-o da melhor maneira que pode, a testa gotejando de suor apesar do frio, a faca pronta para ser empunhada no caso de surgirem ladrões. A noite estava prestes a cair quando o mercador chegou às portas de Wonderville. Mal circulou os muros de pedra, vieram gritando por ele.
- Reed, Reed! Venha logo!
- O que houve? Por que tanta gritaria? - perguntava aos homens, vendo Thompson e mais quatro se aproximarem.
Dividiram com Reed as mercadorias que carregava e o puxaram pelo braço em direção à casa.
- Está pra nascer! - gritou um dos homens, um pouco esbaforido.
O mercador sorriu. Finalmente alguém para carregar seu nome, para dar à sua existência um punhado da eternidade.
Chegando a porta, largou a carga na soleira e entrou em casa o mais rápido que pôde. Já dava para ouvir os gritos de Nancy no cômodo ao lado. A sala estava cheia e todos o cumprimentavam.
- Como ela está? - gritou Reed, tentando entrar no quarto em meio ao tráfego de bacias com água e panos ensanguentados que passavam, levados pelas mulheres que ajudavam no parto.
- Tudo caminhando! - gritou a parteira lá de dentro, antes que a porta se fechasse novamente.
- Acalme-se homem! Nancy é uma mulher forte! Vai dar tudo certo dessa vez. - Taylor, o alfaiate, tentava acalmar o amigo. Todos tinham esperança de que a criança vingasse.
Poucas horas depois ouviram o choro. Reed empurrou a porta, invadindo o quarto. Nancy estava deitada, suada e sangrando, com a criança nos braços. Olhou para ele e sorriu, enquanto a alma já se desgrudava do corpo. As mulheres enxugavam as lágrimas.
- É um menino - disse a parteira, entregando agora a criança nos braços do pai - Sentimos muito por Nancy...
O mercador aproximou-se do corpo da mulher e tocou seu rosto frio. Olhou para o filho, a cabeça ainda molhada de sangue.
- Você vai se chamar Rowan... - disse, devolvendo o bebê a uma das mulheres e pedindo que se retirassem e chamassem o padre.
Recostou a cabeça no peito da esposa. Nenhuma palpitação, nada. Reed chorou por algum tempo, até que um estalido fez com que levantasse a cabeça e olhasse ao redor. Um par de olhos alaranjados espreitava do lado de fora. Ele abriu a janela e deixou que a criatura entrasse. Era escura e peluda, tinha orelhas pontudas e os dentes à mostra.
- Hummm... Vejo que hoje a sua tristeza é maior que a sua alegria. Quem diria! Mas nada supera a sua frustração... - soltou uma risada estridente e sentou-se na beira da cama sob o olhar colérico do mercador. - Você teve o que pediu: um filho! Eu o trouxe para você! Deveria demonstrar algum agradecimento...
- A que custo? - gritou com raiva - Ao custo da vida de Nancy? Isso não está certo!
- Eu disse que a quantia que você me deu não traria garantias... E ainda falta a metade do combinado...
- Eu não tenho nada para te dar! Não vai arranjar nenhuma moeda a mais de mim!
- Caso não pague eu levarei comigo o que trouxe para você com tanta generosidade... - disse encarando a pequena manjedoura, montada ao lado da cama.
- Nem pense nisso, Púca! - Reed se colocou à frente da criança.
- Você não poderá protegê-lo para sempre! - sibilou, os olhos ainda mais alaranjados.
A porta se abriu e o padra entrou apressado. A criatura desapareceu no mesmo instante.
- Imaginei que já não restasse tempo para a Extrema Unção... - disse o padre - Pobre Nancy... Eu disse à você que isso era uma loucura, Reed! Eu temia que isso tudo acontecesse!
- Eu sei, Padre... Não víamos outra saída... Estávamos desesperados e...
- Não importa mais... Já está feito! - disse, fechando os olhos da mulher.
- Perdão, Padre! - Reed chorava.
- Não sou eu quem deve te perdoar. - o Padre espiava para fora da casa - Escute... dois cães negros estão rondando a casa...
- Barghests? - Reed levantou assustado - Vieram buscá-la? Não pode ser... Aquela maldita... Isso só pode ser coisa dela...
- Receio que sim... Você sabe o que a presença deles significa, não sabe? - o padre lançou um olhar severo - Estes cães são Guardiões das Profundezas...
Reed apenas assentiu com a cabeça.
- Espero que, pelo menos, tudo isso sirva de lição para que você nunca mais faça negócio com as criaturas da Floresta Cinzenta... - o Padre tentou se acalmar e se pôs a rezar o Pai-Nosso sobre o corpo para protegê-lo.
- Você deve batizar o menino logo, Reed - advertiu o Padre, antes de sair do quarto.
Não tardou até que as mulheres batessem na porta. O mercador mandou que preparassem o corpo para o funeral. Ao amanhecer a esposa estava perfumada, penteada e vestida com a melhor roupa que possuía. Foi levada pelo cortejo dos vizinhos e amigos, que revezavam carregar o caixão. Reed caminhava à frente junto ao Padre, que lançava água benta para o alto, afugentando os Barghests que espreitavam por detrás das casas.
Depois do enterro, Reed retornou a casa com o pequeno Rowan. Conseguiu uma ama de leite entre as mulheres do vilarejo e agora se punha a arrumar o cômodo onde a criança dormiria. Ao redor da porta e do berço Reed pendurou colheres de ferro.
Apertou forte o relicário que retirara do pescoço da mulher e que agora tinha a imagem de Nancy do lado de dentro. A partir de agora estava sozinho, com a missão de proteger a criança. Pedia a Deus que isso não fosse tão difícil quanto parecia...
[Continua ...]
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