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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Feijões e Zumbis [parte 1]



Já fazia alguns anos que eu a visitava. Quase toda a semana, subia até o seu apartamento pela escada do edifício levando debaixo do braço qualquer coisa que pudesse virar uma refeição. Ela sempre me recebia gentilmente, apesar de todo o caos que havia ao redor. Há muitos anos os zumbis dominaram a cidade, o estado e talvez até o país. Não se sabe ao certo a extensão que tudo tomou. Não há como se comunicar com quem está distante, e por conta disso muitas pessoas se separaram de vez. No final das contas, a gente aprende a viver do jeito que for preciso. Pra mim não era nada fácil, mas também não era tão difícil. Ser jovem traz grandes vantagens em um mundo onde correr e se esquivar são habilidades fundamentais para a sobrevivência. Eu sabia que ela já não podia, e que por isso quase não se arriscava a sair.
Entrei pela porta da frente, batendo algumas vezes com o nó dos dedos, em um ritmo que conhecíamos. Ela estava sentada, ainda de pijama, com a arma apontada para a entrada. Abaixou a pistola dizendo para que eu me sentasse onde quisesse. Sentei no chão, ao lado dela.
- Achei que você não viria mais hoje, Matias – ela pegou o embrulho e se alegrou ao ver as latas de feijão.
- Demorei para sair. Acho que dormi demais. Imagina se a gente pudesse mandar aquelas mensagens que você me contou? Como era o nome mesmo?
- SMS? Email?
- SMS! Devia ser tudo muito mais prático. Você nem precisaria esperar... já saberia a hora em que eu ia chegar.
- E estragaria toda a surpresa – ela piscou e sentou numa cadeira.
Berta me conta histórias de como tudo era antigamente. Talvez por isso eu sempre volte, mas prefiro acreditar que seja apenas pela sua companhia.
- Não está muito bom, né? – perguntei vendo que ela se esforçava para mastigar.
- Os feijões estão ótimos perto do que comi ontem – ela deu uma gargalhada que me fez sorrir.
- Berta, eu quero saber mais. Quero saber como tudo começou.
- Como tudo começou... Com quantos anos você está mesmo?
- Acho que uns 15, talvez um pouco menos.
- Nossa, como passa rápido! Em pensar que tudo mudou muito antes de você nascer.
Ela terminou os feijões e espiou pela janela, pensativa. Sempre ficava assim um pouco antes de contar alguma coisa realmente interessante. Acho que era saudade o que ela sentia.
“Já faz uns 30 anos. Quando penso nisso, confesso que não sei como sobrevivi por tanto tempo. Eu me lembro do dia em que tudo começou, ou melhor, em que tudo terminou e fiquei aqui, sem ter pra onde ir. Eu trabalhava como fisioterapeuta em um hospital, não muito longe daqui, se pudéssemos pegar um carro e andar alguns quilômetros com ele. Nesse dia eu ouvi um estrondo. Todos ouviram. Algo ressoou de uma forma assustadora, parecia que tudo viria pelos ares. Um brilho intenso, tão intenso que tive que fechar os olhos ou ficaria cega, e tudo ao redor tremeu como nunca havia tremido.
No início pensei que era apenas um terremoto. Me agarrei na bancada ao meu lado e me ergui do chão. Partes do reboco do teto que havia caído e machucado alguns dos pacientes que aguardavam na sala de espera. Corri para ajudar a tirar as pessoas de lá, junto com um enfermeiro que também teve reflexos rápidos. Eu já socorria o segundo paciente e a frase que não saía da minha cabeça era “Como pode um terremoto? No Brasil não tem terremoto! Como pode um terremoto?”.
Um dos pacientes que estava sobre os escombros pegou no meu pé. Levei um susto e estiquei a mão para ajudar a puxá-lo. Foi quando o primeiro pulou pelo balcão e veio para cima de mim. Os olhos estavam avermelhados, mas eu não tinha como saber que este era um sinal. Não deu pra pensar muito. Quando vi a boca dele se aproximar da minha, me esquivei instantaneamente, sem entender porque aquele tarado me agarrava enquanto tanta gente gemia de dor esperando socorro. Saí debaixo dele com uma força que eu mesma desconhecia e vi que outros vinham na minha direção. O enfermeiro gritou primeiro. Você sabe que isso é suficiente, não é? Eles o devoraram vivo.
Corri, o mais rápido que pude. Fui em direção ao carro que tinha deixado no estacionamento do hospital. Para a minha surpresa ele não estava mais ali, havia andado metros a frente, atravessado a avenida, empurrado pela força dos tremores. No caminho só pensava em Guilherme e na minha mãe. Abri a porta do carro e entrei, uma das mãos pegando o celular, a outra virando a chave na ignição. Acelerei, segui em direção a minha casa, mas não cheguei nem na metade do caminho. Centenas deles bloqueavam a estrada. Outras centenas de pessoas corriam apavoradas. O celular na minha mão não tinha sinal, não servia pra nada, mas ainda assim guardei no bolso. Não fazia idéia de que essa situação se estenderia por tantos anos, por uma vida inteira.
Abri a porta e olhei em volta. Não tinha para onde correr, mas mesmo assim eu corri. Foi a melhor decisão que tomei. Tive certeza disso quando vi que meu carro foi tragado pela multidão. Por sorte encontrei Ricardo, um dos que trabalhava comigo. Ele me ajudou a entrar pela janela de um dos apartamentos e subimos até o andar mais alto. Nos trancamos lá, fechamos as janelas com medo que aqueles seres pudessem escalar paredes, ou qualquer coisa assim, tão incompreensível quanto qualquer minuto daquela situação bizarra. Foi aí que comecei a chorar e não sei dizer por quantas horas chorei abraçada em Ricardo. A noite passou, pavorosa. O medo de que eles invadissem o apartamento não nos deixou dormir. A cada instante ouvíamos um grito que vinha da rua. Mais uma vítima? Mais um deles que surgia? Não sabíamos dizer, não conseguíamos entender o que estava acontecendo e tínhamos muito medo de descobrir."
Continua...
Leila Claudia Braga

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