Já
fazia alguns anos que eu a visitava. Quase toda a semana, subia até o seu
apartamento pela escada do edifício levando debaixo do braço qualquer coisa que
pudesse virar uma refeição. Ela sempre me recebia gentilmente, apesar de todo o
caos que havia ao redor. Há muitos anos os zumbis dominaram a cidade, o estado
e talvez até o país. Não se sabe ao certo a extensão que tudo tomou. Não há
como se comunicar com quem está distante, e por conta disso muitas pessoas se
separaram de vez. No final das contas, a gente aprende a viver do jeito que for
preciso. Pra mim não era nada fácil, mas também não era tão difícil. Ser jovem
traz grandes vantagens em um mundo onde correr e se esquivar são habilidades
fundamentais para a sobrevivência. Eu sabia que ela já não podia, e que por
isso quase não se arriscava a sair.
Entrei
pela porta da frente, batendo algumas vezes com o nó dos dedos, em um ritmo que
conhecíamos. Ela estava sentada, ainda de pijama, com a arma apontada para a
entrada. Abaixou a pistola dizendo para que eu me sentasse onde quisesse.
Sentei no chão, ao lado dela.
-
Achei que você não viria mais hoje, Matias – ela pegou o embrulho e se alegrou
ao ver as latas de feijão.
-
Demorei para sair. Acho que dormi demais. Imagina se a gente pudesse mandar
aquelas mensagens que você me contou? Como era o nome mesmo?
-
SMS? Email?
-
SMS! Devia ser tudo muito mais prático. Você nem precisaria esperar... já
saberia a hora em que eu ia chegar.
-
E estragaria toda a surpresa – ela piscou e sentou numa cadeira.
Berta
me conta histórias de como tudo era antigamente. Talvez por isso eu sempre
volte, mas prefiro acreditar que seja apenas pela sua companhia.
-
Não está muito bom, né? – perguntei vendo que ela se esforçava para mastigar.
-
Os feijões estão ótimos perto do que comi ontem – ela deu uma gargalhada que me
fez sorrir.
-
Berta, eu quero saber mais. Quero saber como tudo começou.
-
Como tudo começou... Com quantos anos você está mesmo?
-
Acho que uns 15, talvez um pouco menos.
-
Nossa, como passa rápido! Em pensar que tudo mudou muito antes de você nascer.
Ela
terminou os feijões e espiou pela janela, pensativa. Sempre ficava assim um
pouco antes de contar alguma coisa realmente interessante. Acho que era saudade
o que ela sentia.
“Já
faz uns 30 anos. Quando penso nisso, confesso que não sei como sobrevivi por
tanto tempo. Eu me lembro do dia em que tudo começou, ou melhor, em que tudo
terminou e fiquei aqui, sem ter pra onde ir. Eu trabalhava como fisioterapeuta
em um hospital, não muito longe daqui, se pudéssemos pegar um carro e andar
alguns quilômetros com ele. Nesse dia eu ouvi um estrondo. Todos ouviram. Algo
ressoou de uma forma assustadora, parecia que tudo viria pelos ares. Um brilho
intenso, tão intenso que tive que fechar os olhos ou ficaria cega, e tudo ao
redor tremeu como nunca havia tremido.
Um
dos pacientes que estava sobre os escombros pegou no meu pé. Levei um susto e
estiquei a mão para ajudar a puxá-lo. Foi quando o primeiro pulou pelo balcão e
veio para cima de mim. Os olhos estavam avermelhados, mas eu não tinha como
saber que este era um sinal. Não deu pra pensar muito. Quando vi a boca dele se
aproximar da minha, me esquivei instantaneamente, sem entender porque aquele
tarado me agarrava enquanto tanta gente gemia de dor esperando socorro. Saí
debaixo dele com uma força que eu mesma desconhecia e vi que outros vinham na
minha direção. O enfermeiro gritou primeiro. Você sabe que isso é suficiente,
não é? Eles o devoraram vivo.
Corri,
o mais rápido que pude. Fui em direção ao carro que tinha deixado no
estacionamento do hospital. Para a minha surpresa ele não estava mais ali,
havia andado metros a frente, atravessado a avenida, empurrado pela força dos
tremores. No caminho só pensava em Guilherme e na minha mãe. Abri a porta do
carro e entrei, uma das mãos pegando o celular, a outra virando a chave na
ignição. Acelerei, segui em direção a minha casa, mas não cheguei nem na metade
do caminho. Centenas deles bloqueavam a estrada. Outras centenas de pessoas
corriam apavoradas. O celular na minha mão não tinha sinal, não servia pra
nada, mas ainda assim guardei no bolso. Não fazia idéia de que essa situação se
estenderia por tantos anos, por uma vida inteira.
Abri
a porta e olhei em volta. Não tinha para onde correr, mas mesmo assim eu corri.
Foi a melhor decisão que tomei. Tive certeza disso quando vi que meu carro foi
tragado pela multidão. Por sorte encontrei Ricardo, um dos que trabalhava
comigo. Ele me ajudou a entrar pela janela de um dos apartamentos e subimos até
o andar mais alto. Nos trancamos lá, fechamos as janelas com medo que aqueles
seres pudessem escalar paredes, ou qualquer coisa assim, tão incompreensível
quanto qualquer minuto daquela situação bizarra. Foi aí que comecei a chorar e
não sei dizer por quantas horas chorei abraçada em Ricardo. A noite passou,
pavorosa. O medo de que eles invadissem o apartamento não nos deixou dormir. A
cada instante ouvíamos um grito que vinha da rua. Mais uma vítima? Mais um
deles que surgia? Não sabíamos dizer, não conseguíamos entender o que estava
acontecendo e tínhamos muito medo de descobrir."
Continua...
Leila Claudia Braga
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