No
dia seguinte eu não queria sair, mas Ricardo disse que a gente precisava. Não
comíamos desde a manhã anterior mas o meu medo era maior do que a minha fome.
Saí praticamente arrastada e o segui mais por temer ficar naquele lugar sozinha
do que por qualquer outra razão. O prédio parecia abandonado. Aliás, não só o
prédio, mas o bairro inteiro. Ricardo arrombou um carro. Nos sentimos vândalos
no começo, mas não existia outra maneira. Entramos no mercadinho da esquina e
esvaziamos tudo o que foi possível. Eu continuava a pensar em Guilherme e na
minha família. Sabia que Ricardo também deveria estar louco de preocupação com
a família dele e com os amigos, então achei melhor não comentar nada. Não ia
adiantar mesmo tocar no assunto. Até tudo voltar ao normal não saberíamos
notícia alguma.
Esperamos
dia após dia pela normalidade retornar a cidade. Passaram-se algumas semanas e
o máximo que havia mudado era a nossa habilidade de arrombar, se esconder,
sussurrar, gesticular e ser entendido às vezes só com o olhar. Ricardo trouxe
algumas armas brancas e fizemos uma espécie de estojo, que chamávamos de
brincadeira de “estojo de açougueiro”.
Em
uma das nossas tardes de vigília – porque nós vigiávamos tudo o tempo inteiro –
ouvimos um barulho que vinha do apartamento no final do corredor. A primeira
reação foi correr até o “estojo” e nos munir de todas as facas possíveis.
Esperamos atentos a quem passasse pelo corredor. Se fosse um deles teríamos que
adicionar mais um crime à nossa lista de delitos, o assassinato. A noite estava
quase caindo quando resolvemos averiguar o que estava acontecendo antes de
sermos surpreendidos na madrugada, onde a maioria deles saía das tocas e quando
fugir para um local distante se tornava inviável. Chegamos perto do apartamento
e ouvimos vozes vindo de lá de dentro. Por mais estranho que possa parecer, fiz
a única coisa que surgiu em minha mente ainda civilizada: bati na porta.
Ricardo
quase teve um filho quando me viu fazer isso, e com as facas na mão esperou
pelo pior. Mas o pior não veio. Um casal abriu a porta, desconfiado. Acho que
eles também não esperavam por uma visita de algum zumbi cordial e pareciam
perdidos ao nos ver. Momentos depois de uma olhadela de cada um sobre o outro,
eles nos convidaram para entrar e acabamos ficando com eles por algum tempo,
dividindo o arsenal de sobrevivência dos nossos saques ao mercadinho. Julia e
Roberto eram casados, não tinham filhos, e pareciam menos infelizes do que eu
ou Ricardo, porque tinham um ao outro. Foi mais ou menos nessa época, e talvez
por pensar sobre esta maneira de driblar a solidão, que comecei a me envolver
com aquele homem que tanto me ajudava a sobreviver. Isso melhorou em parte os
nossos dias, que pareciam não tão cruéis assim. Era bom ter alguém, afinal.
Nossas
idas ao mercado agora eram menos freqüentes. Revezávamos com Julia e Roberto,
de modo que nos arriscávamos bem menos do que antes. Me lembro de estar sentada
no sofá enquanto vigiava o lugar, esperando que Ricardo saísse do banho, quando
Julia chegou sozinha. Ela não sabia explicar onde estava o marido, só sabia
repetir que eles corriam de um zumbi, quando então ele largou sua mão. Julia
não teve coragem de olhar para trás. Continuou correndo até chegar ao
apartamento. Ricardo disse que ele devia ter morrido. Disse assim mesmo, do
jeito que estou falando com você, na lata! Até eu me senti viúva ao escutar
aquela frase seca, repleta de uma realidade que ninguém suportava mais. Mas na
noite seguinte ele apareceu. Bateu à porta e entrou em casa.
Julia
correu e o abraçou forte. Foi quando percebi os olhos vermelhos de Roberto, mas
tudo aconteceu rápido demais e eu não pude fazer nada. Ele a beijou, e acho que
só aí eu entendi o que isso significava. Ele a beijava de olhos abertos, como
se estivesse em transe, enquanto ela se desmilinguia de amores. Até que ela
berrou e ele não soltou mais a boca dela, até arrancar os lábios e ensangüentar
a soleira da porta. Não tive reação, mas Ricardo lançou uma faca que ficou
cravada na testa de Roberto. Julia balbuciava qualquer coisa sem sentido, as
lágrimas escorrendo aos poucos, até os olhos ficarem vermelhos também. Matamos
os dois naquela noite, e isso me dói até hoje. Gostava muito deles, mas esses
malditos tiram de nós tudo o que nos faça feliz. Toda a nossa dignidade.
Depois
disso ficamos mais espertos. Já sabíamos mais sobre eles, quase nada nos
surpreendia. Não nos arriscávamos depois do sol se pôr, andávamos sempre
armados, conseguimos armas de fogo e nos sentimos mais fortes com elas. Voltamos
ao apartamento antigo, aos nossos hábitos antigos, agora mais afinados do que
antes, estávamos nos tornando verdadeiros peritos na arte da sobrevivência. E a
vida seguiu morna - para não dizer fria – numa rotina de esperar os zumbis
saírem das ruas, pegar um carro, quando era possível, saquear o que ainda
existia. Mas pouco tempo depois o estoque do mercadinho acabou, e o do hiper-mercado,
e o da mercearia. Tivemos que migrar para outros bairros, onde encontrávamos um
cenário idêntico, o que afastava cada vez a nossa esperança de um mundo ao
menos próximo ao que existia antes.”
-
Já era parecido com o jeito que a gente vive hoje em dia, né?
-
Sim, bem parecido.
Ela
roçava o polegar nos lábios. Eu queria saber sobre cada detalhe, mas ficava com
medo de perguntar. Essas lembranças deviam deixar qualquer um triste, e
imaginava que isso a abalava mesmo, porque Berta só me contava as histórias do
começo de tudo depois de muita insistência e muitas latas de feijão.
-
O que aconteceu com Ricardo? – tomei coragem.
-
Ele morreu, faz uns 10 ou 12 anos.
-
“Beijado”?
-
Não. Ricardo era muito esperto para ser “beijado”. Nenhum zumbi que cruzou o
seu caminho ficou vivo para contar história – ela parou e riu – Vivo? Que
tolice...
-
Então o que...
-
Febre – ela tocou o canto dos olhos, e eu tive medo de que ela estivesse a
ponto de chorar. Não sei consolar ninguém.
-
Você acha que a sua família...
-
Acho que morreu e Guilherme também. Na verdade preferi pensar assim desde o
começo. Não havia o que fazer para encontrá-los, achei melhor acreditar no pior
logo de uma vez.
Um
zumbi derrubava as latas espalhadas na rua. Às vezes eles gostavam de fazer
barulho sem motivo, mas logo se amontoavam por chamar a atenção uns dos outros
e seguiam em bando para outro lugar. Não me preocupava, mas deixava Berta um
pouco tensa.
-
Daqui a pouco passa... – disse, vendo que a testa dela se franzia olhando lá
para baixo.
-
Eu sei que passa.
-
Tudo passa, né? “Tudo passa... Tudo passará...” Como na música que você me
ensinou?
-
Quase tudo.
-
Você acha que os zumbis passam? Que tudo isso um dia vai passar?
-
Não. Pelo menos não pra mim. Já estou velha para acreditar no futuro.
Saí
de lá antes que anoitecesse e os zumbis tomassem as ruas completamente. Era
quase impossível sobreviver depois do pôr-do-sol. Queria ter ficado e passado a
noite lá, em meio às histórias de Berta, mas ela não deixou. Acho que queria
ficar sozinha ou talvez não tivesse mesmo nada para comer, como ela disse.
-
Dois com fome já é demais. É melhor você ir pra casa.
-
Semana que vem eu volto com mais feijões - disse antes de me despedir e tomar
as ruas, me esquivando para não ser “beijado”, por mais um dia.
Fim
Leila Claudia Braga
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